Tupi, herói e amigo
Para explicar melhor quem foi Tupi, tenho que esclarecer alguns detalhes. O certo seria escrever um relatório muito maior para poder condensar todos os acontecimentos nesse período e dar melhor sentido aos fatos, mas para não fugir demais ao tema, vai um resumo dos acontecimentos.
Ao sair da Ilha fui morar no bairro do Sampaio. A saída da Ilha ocorreu depois que meu pai foi atropelado em frente de nossa casa. Recentemente reformado da Marinha ele resolveu refazer o muro da casa e um caminhão desgovernado subiu a calçado atropelando ele e o pedreiro. Para poder acompanhar melhor o seu tratamento, minha mãe resolveu ir para perto de minhas tias e minha avó no Sampaio onde já moravam.
Estávamos saindo de uma casa com quintal para um apartamento e essa mudança foi no início muito difícil para todos nós, principalmente para meu pai que passaria ali diversos meses na cama, logo ele que sempre foi tão ativo e que gostava tanto de andar e de nadar. Depois disso, ele nunca mais foi o mesmo.
Explico esses detalhes para entender melhor porque não tinhamos um cachorro nos primeiros meses em que ali moramos. Tudo era mais complicado que o habitual com mudança de rotinas e no meu caso um novo colégio distante do quintal e de toda a Ilha e principalmente dos encantos do manguezal.
Passados alguns meses aconteceu do apartamento ser roubado por um gatuno. Naquela época os ladrões ainda eram gatunos ou ventanistas pois entravam sorrateiros pelas janelas e roubavam sem matar ou ferir ninguém. Até ser roubado era melhor antigamente! Pois bem, o ladrão entrou por uma das varandas e levou alguns pertences sem muito valor a não ser por um relógio que meu pai tinha trazido da Suiça, uma peça banhada a ouro, daqueles relógios que ficam rodando dentro de uma redoma de vidro e que chamava muito a atenção. Hoje é coisa de colecionador. Além do relógio o ladrão levou também o maço de cigarros continental que meu pai fumava e isso foi depois engraçado porque foi o que ele mais reclamou na noite do assalto.
Naquele tempo se chamava a polícia para esses casos e o próprio delegado foi lá em casa ainda de noite e depois de examinar a situação disse para meu pai que certamente o ladrão voltaria pois tinha saído com pressa e o que ele não levou iria ficar martelando na cabeça dele até que voltasse. Diante disso, meu pai resolveu arranjar um cachorro e naquela semana mesmo ele comprou um de um homem que ele não conhecia mas que por coincidência teria dito a ele que tinha uns filhotes para vender. Não sei qual a razão, mas meu pai logo de cara deu-lhe o nome de Tupi.
Ele veio pequeno, ainda bebendo leite e logo se afeiçoou a meu pai escolhendo-o definitivamente como 'dono'. Era um mestiço de uma raça indefinida, meio dourado e com uma cara meio amarrada como se não fosse de muita conversa e intimidades ou brincadeiras desnecessárias. Chamava atenção seu olhar fixo como está ali na foto, a única que tenho dele. Na mesma foto se vê o mico estrela de minha mãe que vivia solto na casa e que se dava muito bem com o Tupi que não tolerava outros animais principalmente ratos que matava em questão de segundos e de gatos que causaram até aborrecimentos de meu pai com alguns vizinhos. O Tupi era frio e calculista mas não rosnava nem ameaçava nem jamais mordeu qualquer pessoa conhecida. Lembro agora que ele também pouco latia. O negócio dele era estar ao lado de meu pai e com eole passear pela rua.
E não é que os ladrões voltaram! Uns tres meses depois do primeiro roubo, acordamos de noite com o Tupi latindo furiosamente (e logo ele que não latia quase nunca) e foi aquela confusão, meu pai se levantou e com a Beretta que tinha na mesa de cabeceira foi até a sala em tempo de ver o ladrão pulando pela janela e depois correndo com um outro lá na rua. Meu pai ia dar uns tiros para o alto mas minha mãe nervosa não deixou e foi aquilo de vizinho acender luz, abrir janela, gente perguntando o que foi que houve e meu pai da varanda dizendo "Foi o Tupi que botou os ladrões para correr!". Meu pai não parava de elogiar a bravura do cachorro que parece que entendia tudo e ficava andando ao lado dele, ainda cheirando os cantos como se estivesse procurando algum gatuno retardário para aplicar um corretivo.
Como prêmio por sua iniciativa e bravura, no dia seguinte meu pai comprou uma peça de filé mignon e deu para o Tupi comer lá na área. Minha mãe ficou revoltada e disse que meu pai estava fazendo besteira que o cachorro ia gostar muito mais se fosse um pedaço de osso, uma costela, mas meu pai que era teimoso disse que o filé era melhor porque ele merecia ganhar um prêmio especial e assim foi.
Meu pai e o Tupi se tornaram companheiros durante anos seguidos. Eu era como um irmão do Tupi e não tinha a mesma abertura de diálogo com ele como ele tinha com meu pai. Ás vezes eu saia com ele e muitas vezes ele ficava comigo no quarto enquanto eu estudava ou escutava música mas sempre procurava estar mais por perto de meu pai do que com qualquer outra pessoa.
Anos mais tarde meu pai voltou a morar na casa da Ilha que tinha permanecido fechada durante alguns anos e alugada por um outro tempo. Meu pai levou com ele o Tupi que lhe fazia companhia enquanto ele cuidava de reformas na casa. Com uns dezoito anos de vida mais ou menos o Tupi ficou muito doente e um dia morreu. Meu pai me contava sempre com os olhos cheios de lágrimas - e meu pai era do tipo durão - que ele nos últimos momentos estava em seus braços olhando para ele e que aos poucos se foi, sem deixar de encarar meu pai que o manteve seguro nos braços sem nada poder fazer a não ser fazer-lhe companhia nesse último momento de sua vida. A perda do Tupi abalou muito meu pai que o tinha como companheiro e amigo, sem aquelas frescuras de dengos e chamegos. Eram só amigos e nada mais. Mas eram grandes amigos. Tenho a certeza de que a decadência de saúde de meu pai ocorreu depois que o Tupi morreu - parece que ele perdeu algum sentido e alguns motivos e deixou de ter entusiasmo e interêsse por muitas outras coisas.