Friday, May 05, 2006

Tupi, herói e amigo


Para explicar melhor quem foi Tupi, tenho que esclarecer alguns detalhes. O certo seria escrever um relatório muito maior para poder condensar todos os acontecimentos nesse período e dar melhor sentido aos fatos, mas para não fugir demais ao tema, vai um resumo dos acontecimentos.

Ao sair da Ilha fui morar no bairro do Sampaio. A saída da Ilha ocorreu depois que meu pai foi atropelado em frente de nossa casa. Recentemente reformado da Marinha ele resolveu refazer o muro da casa e um caminhão desgovernado subiu a calçado atropelando ele e o pedreiro. Para poder acompanhar melhor o seu tratamento, minha mãe resolveu ir para perto de minhas tias e minha avó no Sampaio onde já moravam.

Estávamos saindo de uma casa com quintal para um apartamento e essa mudança foi no início muito difícil para todos nós, principalmente para meu pai que passaria ali diversos meses na cama, logo ele que sempre foi tão ativo e que gostava tanto de andar e de nadar. Depois disso, ele nunca mais foi o mesmo.

Explico esses detalhes para entender melhor porque não tinhamos um cachorro nos primeiros meses em que ali moramos. Tudo era mais complicado que o habitual com mudança de rotinas e no meu caso um novo colégio distante do quintal e de toda a Ilha e principalmente dos encantos do manguezal.

Passados alguns meses aconteceu do apartamento ser roubado por um gatuno. Naquela época os ladrões ainda eram gatunos ou ventanistas pois entravam sorrateiros pelas janelas e roubavam sem matar ou ferir ninguém. Até ser roubado era melhor antigamente! Pois bem, o ladrão entrou por uma das varandas e levou alguns pertences sem muito valor a não ser por um relógio que meu pai tinha trazido da Suiça, uma peça banhada a ouro, daqueles relógios que ficam rodando dentro de uma redoma de vidro e que chamava muito a atenção. Hoje é coisa de colecionador. Além do relógio o ladrão levou também o maço de cigarros continental que meu pai fumava e isso foi depois engraçado porque foi o que ele mais reclamou na noite do assalto.

Naquele tempo se chamava a polícia para esses casos e o próprio delegado foi lá em casa ainda de noite e depois de examinar a situação disse para meu pai que certamente o ladrão voltaria pois tinha saído com pressa e o que ele não levou iria ficar martelando na cabeça dele até que voltasse. Diante disso, meu pai resolveu arranjar um cachorro e naquela semana mesmo ele comprou um de um homem que ele não conhecia mas que por coincidência teria dito a ele que tinha uns filhotes para vender. Não sei qual a razão, mas meu pai logo de cara deu-lhe o nome de Tupi.

Ele veio pequeno, ainda bebendo leite e logo se afeiçoou a meu pai escolhendo-o definitivamente como 'dono'. Era um mestiço de uma raça indefinida, meio dourado e com uma cara meio amarrada como se não fosse de muita conversa e intimidades ou brincadeiras desnecessárias. Chamava atenção seu olhar fixo como está ali na foto, a única que tenho dele. Na mesma foto se vê o mico estrela de minha mãe que vivia solto na casa e que se dava muito bem com o Tupi que não tolerava outros animais principalmente ratos que matava em questão de segundos e de gatos que causaram até aborrecimentos de meu pai com alguns vizinhos. O Tupi era frio e calculista mas não rosnava nem ameaçava nem jamais mordeu qualquer pessoa conhecida. Lembro agora que ele também pouco latia. O negócio dele era estar ao lado de meu pai e com eole passear pela rua.

E não é que os ladrões voltaram! Uns tres meses depois do primeiro roubo, acordamos de noite com o Tupi latindo furiosamente (e logo ele que não latia quase nunca) e foi aquela confusão, meu pai se levantou e com a Beretta que tinha na mesa de cabeceira foi até a sala em tempo de ver o ladrão pulando pela janela e depois correndo com um outro lá na rua. Meu pai ia dar uns tiros para o alto mas minha mãe nervosa não deixou e foi aquilo de vizinho acender luz, abrir janela, gente perguntando o que foi que houve e meu pai da varanda dizendo "Foi o Tupi que botou os ladrões para correr!". Meu pai não parava de elogiar a bravura do cachorro que parece que entendia tudo e ficava andando ao lado dele, ainda cheirando os cantos como se estivesse procurando algum gatuno retardário para aplicar um corretivo.

Como prêmio por sua iniciativa e bravura, no dia seguinte meu pai comprou uma peça de filé mignon e deu para o Tupi comer lá na área. Minha mãe ficou revoltada e disse que meu pai estava fazendo besteira que o cachorro ia gostar muito mais se fosse um pedaço de osso, uma costela, mas meu pai que era teimoso disse que o filé era melhor porque ele merecia ganhar um prêmio especial e assim foi.

Meu pai e o Tupi se tornaram companheiros durante anos seguidos. Eu era como um irmão do Tupi e não tinha a mesma abertura de diálogo com ele como ele tinha com meu pai. Ás vezes eu saia com ele e muitas vezes ele ficava comigo no quarto enquanto eu estudava ou escutava música mas sempre procurava estar mais por perto de meu pai do que com qualquer outra pessoa.

Anos mais tarde meu pai voltou a morar na casa da Ilha que tinha permanecido fechada durante alguns anos e alugada por um outro tempo. Meu pai levou com ele o Tupi que lhe fazia companhia enquanto ele cuidava de reformas na casa. Com uns dezoito anos de vida mais ou menos o Tupi ficou muito doente e um dia morreu. Meu pai me contava sempre com os olhos cheios de lágrimas - e meu pai era do tipo durão - que ele nos últimos momentos estava em seus braços olhando para ele e que aos poucos se foi, sem deixar de encarar meu pai que o manteve seguro nos braços sem nada poder fazer a não ser fazer-lhe companhia nesse último momento de sua vida. A perda do Tupi abalou muito meu pai que o tinha como companheiro e amigo, sem aquelas frescuras de dengos e chamegos. Eram só amigos e nada mais. Mas eram grandes amigos. Tenho a certeza de que a decadência de saúde de meu pai ocorreu depois que o Tupi morreu - parece que ele perdeu algum sentido e alguns motivos e deixou de ter entusiasmo e interêsse por muitas outras coisas.

No tempo dos cachorros do mato


Nasci na Ilha no final da década de 40. Na rua onde eu morava passavam tão poucos carros que tinha até um cachorro que costumava dormir no meio da estrada que sequer era asfaltada. De noite ele ia ali para o meio da rua onde se deitava no mesmo lugar de sempre, uma pequena depressão onde dormia até o amanhecer. Não havia ainda ônibus, só "lotação" que não circulava de noite e os carros eram todos estrangeiros, a maioria pretos do tipo que se vê agora nas novelas de época.

Nessa paisagem tão mais tranquila e tão menos perigosa e poluída, os cachorros circulavam pelas ruas sem correrem os perigos atuais. Era comum encontrar cachorros conhecidos em outros bairros e muitas vezes ao sair da Escola Cuba lá no Zumbi eu encontrava o Bob passeando perto da praia como se estivesse me esperando para me acompanhar de volta até em casa.

Um dos sinais do progresso foi dado através do aumento de cães atropelados. Lembro que era uma surpresa o comentário de que algum cão tivesse morrido sob as rodas de um carro. "Como pode? Quem atropelou? De quem era o cachorro?".

Lembro também que quando ia pescar de barco com meu pai algumas vezes levávamos o Bob no 'caíque' e que ele ia soberano na proa fiscalizando o mangue a procura de alguma novidade. Bastava ele ver alguma coisa interessante para pular na água e sair nadando. Quando não o levávamos, ele seguia o barco correndo e latindo pela estrada que margeava o mangue até que nós saíssemos do canal depois de passar por baixo da pequena ponte que separava a colônia de pescadores da estrada principal.

Toda essa tranquilidade começou a se desfazer quando a ponte que liga a Ilha à Ciidade foi inaugurada em 1949. Até aquela data, para sair e entrar na Ilha só pelas barcas. Sem a ponte, a maioria dos carros era de moradores do próprio local. A ponte trouxe o movimento de carros e o pânico para a cachorrada local.

O Bob costumava também ficar esperando os cachorros do mato (câes vinagre) aparecerem para pular a cerca do quintal, atravessar a rua e pular no mangue para tentar pegá-los. Do quintal lá de casa a gente podia ver quando os vinagres saiam da mata da Marinha e desciam para o mangue para pegar caranguejos. Vinham em grupos pequenos, talvez de meia duzia cada, que se espalhavam pelo lamaçal sempre que a maré estava baixa. Nunca chegavam muito perto do lado onde morávamos e mantinham uma distância de segurança e respeito, talvez já pressentindo que os humanos seriam o fim de sua espécie em pouco tempo. Não lembro de outros cachorros os atacando a não ser o Bob que também não conseguia ir até eles mas que os afungetava com seus latidos insistentes. Esses cachorros do mato têm (ou tinham quando eram vivos) uma adaptação de membrana nas patas que facilitava eles nadarem ou se locomovem na lama. Outrora habitantes da Mata Atlântica, parece que estão atualmente completamente extintos por força do progresso...

A imagem que guardo dessa época é do Bob imponente, sentado no quintal com a atenção voltada para o lado do mangue de onde sabia que os vinagres iriam aparecer, geralmente de tarde. Ele ficava ali imponente sem mexer o corpo a não ser as orelhas e com o olhar fixo num ponto distante. Assim que via os cachorros ele se levantava e mudava a fisionomia e se estivesse por perto ele me olhava rapidamente voltando depois o olhar para os vinagres como se estivesse me dizendo "olha, lá estão eles!". Ele ficava assim por um tempo até que num momento exato para o seu instinto ele corria e pulava a cerca e entrava no mangue até onde podia e de lá ficava latindo até que os vinagres desaparecem no manguezal. Imagino que ele jamais tenha chegado perto de algum. Se a maré tivesse cheia ele poderia ir até lá nadando mas os vinagres só apareciam na maré baixa e o Bob não conseguiria andar até lá sobre a lama.

Essas são as lembranças mais antigas de meu primeiro grande amigo, companheiro de bons momentos da minha infância. Não consigo me lembrar como ele se foi. Não me lembro dele morto ou de alguém me dizendo que tinha morrido. Desapareceu como tantas outras lembranças daquela época. De repente não estava mais ali. Todos os demais cachorros que tive desde então, trazem no olhar um pouco da expressão do meu grande amigo Bob, com quem aprendi sobre a superior dignidade canina e o quanto é importante tratá-los com respeito para deles receber respeito em troca. Não se tem um cão. Ninguém pode se denominar dono de um cão ou se ter um cão como brinquedo ou passatempo ou ostentação. Somos seus companheiros e se quisermos saber mais sobre o sentido da vida temos com eles a chance de muito aprender e de muito ensinar em troca. De qualquer forma é uma lástima que os cães não tenham hoje o espaço e a liberdade e que vivam confinados em apartamentos com horários e regras para um ou outro passeio presos pela guia. Mesmo assim, ainda se pode conseguir muito se a relação for de respeito, consideração e amor. Adaptamo-nos a tantas coisas de que não gostamos e os cães também aprenderam a se ajustar a essas modernidades para poderem continuar ao nosso lado.


Thursday, May 04, 2006

No princípio era o latido



Minha vida foi sempre repleta de cachorros. Até onde consigo me recordar, os cachorros sempre estiveram presentes. Minhas lembranças mais antigas trazem com elas um focinho ou um latido. Não me recordo de um primeiro cachorro mas de uma mescla de cães que vieram e se foram em tempos diferentes e alguns ao mesmo tempo e que se confundem agora num único cachorro primordial, o fundador de uma saga de alegrias e tristeza nesse convívio com essa outra espécie companheira, tantas vezes superior em caráter ao chamado homo sapiens.

De fato, a mais antiga de todas as lembranças, o contato primeiro de todos, foi com um "Tenerife" que aparece nas fotos antigas ao lado de minha mãe quando ela estava grávida de mim. Tenho a impressão de que ouvi dizer que tinha sido um presente de meu pai e que ele o teria trazido da Europa ao retornar de uma viagem pela Marinha de Guerra. Mas não tenho certeza e infelizmente não há quem esteja vivo daquela época para esclarecer esse detalhe.

Atualmente essa raça ganhou contornos de sofisticação e eu diria de 'frescura' com cortes e penteados e um nome rebuscado de "frisé" ou "bichon frisé". Naquela época ele era do jeito que tinha que ser, sem penteados ou cortes extravagantes que ao meu ver parece que agradam mais aos humanos que aos próprios cachorros, vítimas da vaidade pessoal de seus donos que os têm mais como ostentação e moda que como amigo e companheiro. Mas isso é outra história que vou deixar para depois.

Aqui está uma foto de minha mãe com o "Dudu" - acho que era esse o nome (vou colocar depois que achar!)

O nome mais antigo do qual me lembro é "Dick", um outro Tenerife muito brabo e que só obedecia minha mãe. O restante da família ele tratava da mesma forma que os gatos, rosnando e se possível mordendo. Bem moleque ainda, recordo-me de ter levado uma de suas famosas dentadas por ter passado ao seu lado enquanto ele cochilava no quintal. O Dick era assim, um sujeito de poucas conversas e um mínimo de abanos de cauda a não ser para minha mãe que ele considerava rainha única e absoluta no império do quintal.

Aqui uma foto bastante estranha onde ele está ao meu lado com o outro cachorro mais antigo de minha vida, o "Bob". Até hoje não entendo como ele estava ali sentado na cadeira sem me morder, como seria o mais natural e provável em condições normais.

Pelo jeito, parece que a foto foi tirada após um banho e os dois deviam estar meio assustados e certamente por isso o Dick não aparece ali mastigando minha mão. Eles também tinham muito medo de meu pai que deve ter tirado essa foto. O Bob ainda era pequeno e é dentre todos o que posso considerar como tendo sido realmente meu primeiro cachorro. Com ele vivi grandes 'aventuras' caçando gambás e cachorros do mato no mangue em frente de casa quando ele já era bem maior do que nessa foto. Onde está você Bob?


eu, Bob e Jardel, um colega de infância


Lembro-me do Bob sempre pulando o muro e correndo para atravessar a rua e mergulhar no mangue sempre que via lá ao longe os cachorros do mato que desciam das matas do morro da Marinha para pegar caranguejo quando a maré estava vazante. Como isso parece - e de fato é - uma lembrança tão antiga!


Dick, eu e Bob

Olhando melhor, nessa segunda foto se pode perceber que o Dick está rosnando e com sua peculiar cara de poucos amigos e que se não fosse pela presença fiscalizadora e ameaçadora de meu pai, ele não ficaria ali sentado só no ensaio do ataque. Deve ter sido um momento de triunfo esse meu instante com o Dick dominado. Provavelmente depois da foto ele deve ter me mordido, mas isso era coisa natural.

O Bob tinha um pequeno, quase imperceptível percentual da raça Setter e uma avassaladora quantidade de outras raças misturadas, um verdadeiro vira-lata com toda a honra e respeito. São os melhores de todos disso não há dúvida nem junto aos mais especializados criadores e admiradores de cães. Por serem um amálgama de raças, o vira-lata tem em si todas e ao mesmo tempo nenhuma das características particulares e são sempre uma agradável companhia, quase sempre surpreendendo seus donos com a inteligência e a amizade que lhes são peculiares. Mais resistentes, são os que mais estão ao nosso lado em todas as situações.

Mal comparando, o vira-lata é como o bom carioca que se dá bem com todos e que a todos sacaneia e que sabe curtir a vida quer seja no palácio ou na favela, para ele tanto faz o que importa é ser feliz. Não é uma regra mas é quase um procedimento padrão dos 'sem raça'. Podemos dizer que o cão sem raça é o de melhor raça afinal.

Minha infância toda na Ilha, a maioria dos cães dessa época também eram ilhéus. Embora a presença mais marcante dessa época seja a do Bob, houve outros dos quais me lembro com carinho e saudade. Teve a "duquesa" uma cachorra que achei perdida na rua e que trouxe para casa e que quando meu pai viu que era uma cadela não quis que ela ficasse conosco porque teria filhotes. Discute daqui, chora dali, venceu meu pai a discussão e depois de alguns dias ele a levou para longe de casa. Soube depois que a deixou numa praça num outro bairro da Ilha. De noite, quando quase todo mundo já estava dormindo, ela voltou não se imagina como e ficou lá no portão chorando até que meu pai incrédulo e aborrecido se levantou e foi lá abrir o portão para ela entrar e nunca mais sair lá de casa. Lembro que teve filhotes e que demos esses filhotes para alguns conhecidos mas não lembro como nem quando ela própria saiu da história de nossas vidas. Mortos todos eles estão agora, inclusive a maioria absoluta de todos os parentes.

Mas, como dizia, houve muitos outros cachorros. Teve o "Buck" que era um boxer bonachão que nos foi dado por um tio. Veio com pedigree cheio de referências a pais e avós campeões mas que vivia ali no quintal disputando comida com o Bob e revirando a lata de lixo como qualquer outro que tivesse chegado sem muitas qualificações. Sofria do coração. Um dia teve um ataque, ficou ali babando e quase morreu. Meu pai o curou jogando um balde de água fria na cabeça dele. Alguns anos depois ele foi dado de presente para um outro parente que tinha quintal mas não tinha cachorro (não consigo imaginar um quintal sem cachorro até hoje!).


eu com Buck em frente de casa na Ilha

Os cachorros não viveram só com os humanos naquela casa da Ilha. Por ali passaram os micos (inclusive um mico-leão dourado que vivia solto e que caçava pardais incautos que pousassem nas janelas. Naquela época os micos podiam viver nas casas e eram bem mais felizes e abundantes do que hoje, quase extintos sob a proteção de órgãos e leis que mais favorecem o seu desaparecimento que sua preservação). Tinha um ou dois gatos, galinhas, galos, passarinhos e papagaio gritando no puleiro.